terça-feira, 5 de dezembro de 2017

CINEMA E ESQUIZOFRENIA

ACABO DE ASSISTIR NA NETFLIX, A UM FILME MUITO FORTE, BASEADO EM FATOS REAIS. 
"O SOLISTA" FALA COM MUITA EMOÇÃO DE ESQUIZOFRENIA.
VALE A PENA CONFERIR.



ESQUIZOFRENIA NO CINEMA


Uma análise sobre as formas de representação da esquizofrenia no cinema.

A esquizofrenia é um dos principais transtornos mentais humanos e aflige cerca de 1% da população mundial, podendo atingir pessoas de qualquer gênero, raça, classe social e país. Os primeiros sintomas acontecem entre os 15 e 35 anos de idade, sendo que nos homens tende a aparecer entre os 15 e 25 anos e nas mulheres aparecem mais tardiamente, entre os 25 e 35; não se sabe ao certo o motivo, mas supõe-se que a implicação de fatores hormonais e da diferença do desenvolvimento cerebral relacionado ao sexo tenha influência nessa diferença entre os sexos. Portanto, a esquizofrenia atinge uma parcela significativa da população em idade produtiva, sendo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a terceira doença que mais afeta a qualidade de vida da população entre 15 e 44 anos.
Não existe uma causa única para o desencadear do transtorno. Como as demais psicoses, o prognóstico é incerto para muitos casos, tendo geralmente causação multifatorial. Admite-se hoje que várias causas concorrem entre si para o aparecimento, como: quadro psicológico; o ambiente; histórico familiar da doença e de outros transtornos mentais; e mais recentemente, tem-se admitido a possibilidade de uso de substâncias psicoativas (como a maconha, por exemplo) poderem ser responsáveis pelo desencadeamento de surtos e afloração de quadros psicóticos. O transtorno caracteriza-se por uma grave desestruturação psíquica, em que a pessoa perde a capacidade de integrar suas emoções e sentimentos com seus pensamentos, podendo apresentar crenças irreais (delírios), percepções falsas de ambiente (alucinações) e comportamentos que revelam a perda do juízo crítico. A doença produz também dificuldades sociais, como as relacionadas ao trabalho e relacionamento, com a interrupção das atividades produtivas da pessoa. A esquizofrenia não causa a morte, mas o índice de tentativas de suicídio entre pacientes esquizofrênicos é dez vezes maior do que no de pessoas sem o transtorno psiquiátrico; cerca de 50% dos acometidos pelo transtorno ao menos tentam o suicídio. A explicação vem do fato de a grande maioria dos esquizofrênicos também desenvolverem depressão e outros transtornos psíquicos; o preconceito e a exclusão social também os encorajam a acabar com a própria vida, o que 20% dos que tentam conseguem fazer.
O tratamento envolve medicamentos, psicoterapia, terapias ocupacionais e conscientização da família e amigos, que absorvem a maior parte das tensões geradas pela doença. A esquizofrenia não tem cura, mas com o tratamento adequado a pessoa pode se recuperar e voltar a viver uma vida normal.
A dita loucura sempre foi um tema amplamente abordado na arte, desde a literatura até a pintura; dos contos de Edgar Allan Poe às pinturas de gatos de Louis Wain que ficavam cada vez mais psicodélicos de acordo com a progressão de seu transtorno. Dentre os transtornos, a esquizofrenia é um dos mais visados pela arte por conta da liberdade artística que as alucinações e delírios oferecem; liberdade que aumentou exponencialmente com a imagem em movimento do cinema e, principalmente, com o advento do som no mesmo. A explicação do por que o advento do som no cinema ser um grande avanço para a representação de uma alucinação esquizofrênica pode ser encontrada no texto de Michel Chion, A audiovisão: som e imagem no cinema (2011): Sem dúvida porque, por serem pouco objetivados, pouco nomeados e pouco delimitados (apesar de um início de nomeação que, de resto, encontra viva resistência), os sons atraem, por um magnetismo ligado a toda a indefinição e a todo o desconhecido que os rodeia, efeito pelos quais, na verdade, não são especialmente responsáveis.

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Os gatos pintados por Louis Wain e a transformação da representação com a progressão da doença.
Por conta desse “magnetismo ligado à indefinição e ao desconhecido” o som consegue ter uma liberdade maior para representar algo abstrato e desconhecido para a grande maioria dos espectadores, algo que a imagem, como será visto nas análises posteriormente, não consegue geralmente por ficar muito ligada ao “real”. Com essa liberdade fica possível ao som até mesmo ajudar a imagem que o acompanha a se abstrair ao acrescentar ruídos ou explorando a transição entre canais no cinema, dando uma mobilidade maior ao som do que é possível à imagem; de qualquer modo, é a união dos dois no audiovisual que dá a imensa vantagem na representação de uma alucinação diante das outras artes, visto que as alucinações são em sua maior parte auditivas e visuais. Ainda em A audiovisão: som e imagem no cinema, Chion afirma que uma sensação não acontece separadamente das demais, então, por mais inefável que sejam as alucinações esquizofrênicas para quem não tem o transtorno, é fácil supor que, como todas as outras sensações humanas, as alucinações aconteçam em “bolas de sensações aglomeradas” – sensações auditivas, visuais, olfativas e etc. – como os sonhos e alucinações toxicológicas.
Como, então, representar uma bola sensorial com apenas duas sensações? Ainda mais quando uma delas, a visual (tratado pejorativamente como o principal sentido do cinema), é majoritariamente ligada de maneira intrínseca à realidade? Teoricamente, como afirmado anteriormente neste trabalho, a adição de ruídos pode contribuir para isso, somando-se, segundo Chion, uma “mentira piedosa”: o exagero sistemático do som no contraste da intensidade, até mesmo no som direto.
Outra questão importante é: como construir a sensação de realidade e verossimilhança em uma situação que o espectador desconhece? Esta é uma questão mais complexa, e, a resposta pode ser encontrada, novamente segundo Chion, no texto supracitado: Aquilo que soa verdadeiro para o espectador e o som que é verdadeiro são coisas muito diferentes. Para apreciarmos a veracidade de um som, referimo-nos muito mais a códigos difundidos pelo próprio cinema, pela televisão e pelas artes representativas e narrativas em geral, do que à nossa hipotética experiência vivida. Muito frequentemente, de resto, não temos qualquer recordação pessoal a que possamos recorrer quanto à cena mostrada: por exemplo, num filme de guerra, num filme exótico ou sobre uma tempestade no mar, que ideia temos nós, em geral, do som que os acompanha antes daquela que o filme nos comunica?
A esquizofrenia, entretanto, não é amplamente trabalhada no cinema, como os filmes de guerra, os de sci-fi ou os de culturas exóticas; e quando é trabalhada, como será visto, é feita de modo muito tímido, talvez por se tratar de uma questão muito delicada. Os códigos de veracidade do transtorno, portanto, podem ainda ser criados, ou podem-se aperfeiçoar os tímidos códigos existentes; de um modo ou de outro, uma ousadia maior é necessária para representar algo tão abstrato e sinestésico como o assunto em questão. Para criar ou aperfeiçoar esses códigos, deve-se fugir da perfeição. Não é através de um som claro, limpo, sem variações que será transmitida uma sensação de maior verossimilhança, e sim através de um som com imperfeições que provoquem um desconforto, mesmo que sejam feitas em estúdio, na pós-produção e não no som direto. Parafraseando Chion: O público (incluso nisso crítica e teóricos do cinema), de maneira pouco consciente, tem uma concepção bastante simplista e imediata da natureza figurativa do cinema; portanto, a expetativa do espectador é mais de uma verossimilhança interna do que externa – o mais importante é a sensação que é causada nele, não o som ou a imagem em si; se a sensação é “a mesma” que o espectador supostamente teria na vida real, o mesmo a aceita, independente de quão “fiel” ou não é aquela representação diante da realidade. Serão analisadas, agora, as formas usadas pelos cineastas para representar e expressar a esquizofrenia em alguns filmes. Foram escolhidos filmes que expressamente tratam da esquizofrenia de uma maneira mais fiel ao transtorno e não à suas formas pejorativas; Clube da Luta (David Fincher, 1999), por exemplo, foi deixado de fora por tratar de uma suposta dupla personalidade, um transtorno existente apenas na ficção; outros filmes sobre psicoses semelhantes, como Cisne Negro (Darren Aronofsky, 2010), também não foram analisados. O intuito é se manter fiel a uma abordagem mais realista do transtorno; ou seja: o transtorno visto como transtorno, não como loucura.

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Keane (Lodge Kerrigan, 2004) conta a história de um homem que procura sua filha sequestrada em uma estação de ônibus. Ele volta à estação todos os dias na expectativa de encontra-la. Com o decorrer do filme, no entanto, percebe-se que Keane, o pai, é esquizofrênico e então tudo o que aconteceu e acontece durante o filme é visto com desconfiança pelo espectador, por não saber o que é a realidade e o que é fruto da mente de Keane. O foco completo do filme é em cima do protagonista e de sua luta, quase o tempo todo em close-ups; ainda assim, as alucinações não são representadas cinematograficamente, ao menos não de maneira explícita, visto que estão misturadas com a realidade e são tratadas do mesmo jeito que a realidade é, tanto na imagem quanto no som, e resta ao espectador adivinhar o que é real e o que não é. Provavelmente essa foi uma escolha feita para gerar uma ambiguidade e incerteza em todo filme (ambiguidade arruinada na tradução do nome para o português: Esquizofrenia: entre o real e o imaginário); no fim, a representação da esquizofrenia ficou toda baseada na interpretação de Damian Lewis – uma atuação boa, mas que ao ser a única fonte de representação limitou muito as possibilidades de abordagens diferentes sobre o tema.

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Shine (Scott Hicks, 1996) é um filme biografia do pianista australiano David Helfgott, que quando jovem era considerado um prodígio na música, foi ganhador de diversos prêmios australianos de piano e de bolsas de estudo nos Estados Unidos e no Reino Unido; porém por conta de um relacionamento muito perturbado com seu pai – que o oprimiu desde criança, vendo nele quem ele queria ter sido; proíbe-o de ir para os Estados Unidos e queria também proibi-lo de ir para o Reino Unido, David vai e o pai corta as relações do filho com o restante da família – e com a pressão da vida de músico tem um colapso mental e sua esquizofrenia (antes vista apenas como excentricidade e introversão) é descoberta. Novamente, a representação baseia-se totalmente na atuação dos atores que interpretam David; a montagem em in media res deixa o filme mais interessante, mas ainda assim é uma grande perda uma abordagem tão superficial de som, ainda mais por conta do personagem ser um músico. Em comparação com Keane, em Shine há um afastamento maior do personagem e do espectador; até mesmo a atuação é mais resguardada, realmente passando uma sensação mais de excentrismo do que de um transtorno psiquiátrico; talvez por se tratar de uma história real e biográfica, mantendo assim um tratamento mais eufemístico do assunto tenso que é a esquizofrenia. Mesmo não representando as alucinações, delírios ou psicoses, a obsessão de Helfgott pela Rach 3 de Rachamaninoff pode ser vista como uma forma subliminar de abstrair além do básico de uma biografia, visto a grande carga emocional desse concerto romântico e da interpretação de David dela, já que é tocando quando ele mais demonstra suas emoções e sai de si mesmo, de sua realidade.

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Já em Spider (David Cronenberg, 2002), é narrada a história de um homem internado em uma casa de repouso junto com outros doentes psiquiátricos que rememora sua infância e o assassinato de sua mãe pelo seu pai para que ele possa viver com sua amante. Com o decorrer do filme, passado e presente se entrelaçam na mente de Spider, e é em sua mente que está o guia do olhar do filme. Em Spider há a representação da alucinação, mas ainda de maneira muito limitada: primeiramente pela mudança da atriz que interpreta a responsável pela casa de repouso, que Spider começa a ver como a amante responsável pela morte de sua mãe e depois com a revelação de que a amante e a mãe eram a mesma pessoa (a mesma atriz metamorfoseada pelo cabelo e maquiagem contrastantes), a diferença existia apenas na mente de Spider, que ainda criança mata a amante do pai, ou seja, sua mãe, e é internado em um manicômio. Como nos demais filmes, a atuação é o ponto principal da representação da esquizofrenia. O som, assim como em Keane, se limita ao som ambiente e ao diálogo, que não sofre alteração nas alucinações para criar a ilusão de realidade.

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Uma mente brilhante (Ron Howard, 2001), também um filme biografia, conta a história de John Nash, matemático americano ganhador do prêmio Nobel de economia de 1994 com a sua teoria dos jogos, criada décadas antes, mas que foi reconhecida naquele ano por conta da sua aplicação contra trustes. O filme começa com a entrada de Nash no corpo docente da Universidade de Princeton, onde conseguiu seu doutorado e fez as suas teorias matemáticas e econômicas. Alguns anos depois foi para o MIT (Instituto Tecnológico de Massachussets) trabalhar como professor. Foi chamado pelo Pentágono algumas vezes para desvendar códigos soviéticos, o que depois acabou virando uma obsessão. É por conta dessa obsessão com a descoberta de possíveis códigos soviéticos em revistas e jornais que sua mulher, uma ex-aluna, descobre que Nash sofre de esquizofrenia e o interna em um hospital psiquiátrico. Após o tratamento, Nash perde sua capacidade de criação por conta da forte carga de remédios; sentindo-se inútil, decide parar com o tratamento e viver com as suas alucinações, depois de muito demorar a acreditar que o seu antigo colega de quarto, a sobrinha do mesmo, e o agente da CIA que o havia contatado para ajudar o governo na Guerra Fria na realidade nunca existiram. Então, até o fim do filme, as alucinações continuam aparecendo e interagindo com o protagonista, como se fossem pessoas reais; ou seja: a representação é praticamente a mesma de Spider, até mais pobre visualmente, por não conter as transições físicas dos personagens que nem no filme de David Cronenberg. Uma mente brilhante, no entanto, leva uma leve vantagem sonora por conta de uma cena onde a alucinação sonora, as vozes dos personagens que só ele ouve, junta-se aos pensamentos de Nash e fazem uma tempestade sonora de quatro vozes falando coisas diferentes entre si e misturadas com a música ambiente; a sensação de vertigem no espectador é inevitável, tanto pelo caos sonoro, quanto pela rápida movimentação de câmera que dá voltas em close-up em John – infelizmente, essa movimentação não acontece nas vozes e na música, que permanecem nos canais frontais clássicos de diálogo e não acompanham a rotação da imagem em tela.

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O espetacular Homem-Aranha 2: A ameaça de Electro (Marc Webb, 2014), obviamente, não é um filme sobre esquizofrenia, no entanto um de seus personagens, o vilão Electro, sofre com o transtorno. No Homem-Aranha, as alucinações de Electro, apesar de não terem várias aparições por este não ser o foco do filme, são expressas exclusivamente pelo som. Antes da transformação de Max em Electro, ela é representada apenas uma vez através das diversas vozes que ele ouve; após o acidente que o transforma em Electro, essas vozes ganham força e se tornam mais caóticas, começam a estimulá-lo a fazer coisas ruins, e é graças a elas que começa sua luta contra o Homem-Aranha¬¬, aonde a representação sonora de suas alucinações chega ao ápice. A sofisticação e qualidade dessa representação através do som aumentam ao mesmo passo que a raiva do personagem contra o Homem-Aranha e a população: primeiro a alucinação acontece através da miscelânea das vozes do povo que o xinga com as vozes que existem somente em sua mente, o caos é mais bem utilizado aqui do que em Uma mente brilhante principalmente por serem utilizados mais canais sonoros, dessa vez não fixados na parte frontal, mas também utilizando os canais laterais e posteriores, aumentando muito mais a sensação de desconforto em comparação com o filme anterior. As vozes externas se diluem entre as alucinações e se tornam uma só, que começa, então, a repetir “he lied to me, he shooted on me, he hates on me, he’s dead to me” até se fundir com uma música eletrônica, de batida pesada e rápida, que cresce junto com a raiva de Electro, se une a ele em toda sua eletricidade e poder, com drops e uma mixagem excelente, e toma o som do filme por completo; os créditos disso se devem a Hans Zimmer, que compôs a música com as perturbadoras vozes e criou um clima tão espetacular quanto o nome do filme. Essa hibridização entre a alucinação e a música deixa a alucinação mais próxima da metáfora. Langkjaer explica em Spatial perception and technologies of cinema sound que a música é mais facilmente vista como uma linguagem metafórica do que os sons de ruído ou falas são, já que nestes o espectador costuma buscar mais realismo; portanto, a aproximação tanto do ruído, da fala ou de qualquer som com a música, também os torna mais metafóricos, aumentando a sua qualidade artística e as possibilidades de interpretação do expectador sobre o que está acontecendo na obra. Metaforizando as alucinações, elas são libertas das amarras da literalidade que, como foi dito, limitaram demasiadamente os filmes analisados anteriormente; pois se há a dificuldade de se representar algo tão abstrato e impalpável quanto uma alucinação esquizofrênica de uma maneira verossímil, é a própria abstração da realidade diegética que a torna crível para o espectador: “É preferível escolher o impossível verossímil do que o possível incrível” (Aristóteles, Arte poética). Uma das grandes vantagens do Espetacular Homem-Aranha 2 sobre os filmes analisados anteriormente foi a utilização do Dolby Atmos, uma tecnologia de som surround com 128 canais de som independentes; esses canais foram bem utilizados, como foi dito, no início da cena ápice de alucinação do filme, porém, quando música e alucinação se fundiram, o Atmos não foi aproveitado como poderia: caso as vozes, mesmo misturadas na música, ainda tivessem a liberdade de vagar pelo universo sonoro que representava a mente de Electro e não ficassem presas à música na mesma faixa sonora.

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Por fim, O solista (Joe Wright, 2009), mais um filme baseado em personagens reais e também mais um filme que fala sobre um músico prodígio que sucumbiu para a esquizofrenia. Nathaniel Ayers é um morador de rua que toca um violino de apenas duas cordas pelas ruas de Los Angeles; ele foi descoberto pelo jornalista Steve Lopez e então teve sua história contada primeiro em colunas no jornal The Los Angeles Times e depois em um livro biográfico. Nathaniel nasceu em uma comunidade pobre e conseguiu uma bolsa de estudos em uma famosa faculdade estadunidense graças ao seu extraordinário dom para a música. O músico ensaiava com a orquestra tocando seu violoncelo quando teve o primeiro surto da esquizofrenia; depois disso, com a progressão da doença, acabou abandonando a faculdade, fugiu de casa e virou morador de rua. Graças às colunas de Steve Lopez, Nathaniel conseguiu novas oportunidades: ganhou um violoncelo, um apartamento para morar, voltou a ter contato com sua irmã (último parente ainda vivo, que passou a ser sua tutora) e teve oportunidade de voltar a tocar para o público (incidente que não teve sucesso por conta de uma crise de Nathaniel durante o concerto). A atuação brilhante de Jamie Foxx (que por acaso também foi o ator que interpretou Electro no Espetacular Homem-Aranha 2) como Nathaniel era o principal meio de representação da doença durante a maior parte do tempo, até porque o foco da narrativa era dividido entre Nathaniel e Steve Lopez, sendo o último quem a narrativa seguia. A tempestade de vozes aparece também nesse filme, acompanhada de uma música grave, mas sem se misturar com ela; a tempestade aumenta de acordo com a psique de Nathaniel e seu estado emocional; ela tem seu ápice justamente no concerto conseguido para ele por Steve. As vozes de Steve, da irmã de Nathaniel, e muitas vozes sem rosto, misturam-se em faixas separadas e canais separados, cada uma falando uma coisa diferente, umas apoiando o músico, outras o repreendendo, criando um caos tão denso que Nathaniel abandona o concerto e foge; ele corre desesperadamente tentando fugir de si mesmo. O universo sonoro foi tão bem aproveitado quanto na parte das vozes de O Homem-Aranha, mesmo não tendo uma tecnologia tão avançada quanto o Dolby Atmos e sim um “simples” som digital 7.1. As vozes estão em todos os canais e espalhadas pela sala, com intensidades e volumes diferentes, criando uma angústia e desconforto no espectador tão grande que o alívio sentido por Nathaniel ao fugir é compartilhado com o espectador, que também quer fugir do caos na mente do músico ex-morador de rua. Outro grande avanço na representação das alucinações d’O Solista comparado com os demais filmes analisados é através da imagem: ao assistir uma orquestra tocando um concerto do seu amado Beethoven, Nathaniel se emociona ao ponto de conseguir o silêncio em sua cabeça, ocupando-a apenas com luzes das mais diversas cores que aparecem, movimentam-se e desaparecem na sua mente de maneira abstrata, altamente sensorial e relacionada com o concerto de Ludwig van; é essa forma sinestésica que acrescenta um grande valor artístico ao filme ao misturar a abstração da imagem relacionada com a música romântica e com o tão desejado silêncio mental do personagem esquizofrênico.
Mesmo que não intencionalmente, ainda há certo nível de estereótipo nos filmes sobre esquizofrenia, ao tratar o transtorno como loucura e o louco como gênio. Ainda assim, a representação da mesma no cinema, com todo o seu inegável poder de persuasão, é importante para a difusão de informações sobre ela e assim consequentemente diminuir o poder de mitos pejorativos sobre a esquizofrenia, outras psicoses e das doenças psiquiátricas em si. Em todo modo, foi visto que o transtorno ainda é representada de uma maneira muito tímida e limitada, baseada quase que inteiramente na atuação, e com pouca ousadia artística e técnica tanto no som quanto na imagem, quase sempre muito próximos do que foi convencionado como real e não aproveitando a liberdade que representar algo que desestrutura os conceitos de tempo e realidade dá ao artista. Pensando nisso, vale citar novamente Langkjaer no texto supracitado, onde ele fala sobre um “cubismo sonoro”. Esse conceito de sons diversos e vindo de diversas partes com bastante liberdade de movimento seria muito bem aplicado para o aperfeiçoamento da representação das alucinações através do som, ainda mais com a possibilidade de melhor aproveitamento do espaço sonoro que o Dolby Atmos proporciona com sua gigantesca quantidade de canais. Além disso, um entrelaçamento entre som e imagem na obra audiovisual, agindo ambos sinestesicamente, aprimoraria a tratada obra artisticamente e ajudaria a criar uma “bola de sensações” ainda mais próxima da percepção do espectador de verossimilhança; afinal, é a falta de signos já reconhecidos e concretizados de representação do assunto que cria a possibilidade de explorar ainda mais as formas dos signos em si e os efeitos dos mesmos na percepção do espectador. Somente através da união e harmonia de ambos (som e imagem, o audiovisual) é possível fazer a sétima arte chegar mais perto da complexidade e beleza grotesca que é a mente humana, mesmo que a mesma esteja (ou ainda mais por estar) transtornada.


MATEUS CADORE

Consumidor e produtor de conteúdo audiovisual e literário..

Um comentário:

  1. Um bom filme, mas sobre o tema, "mente brilhante foi o que mais me chamou atenção pelo enfoque que foi dado. O Solista, me deixou comovida, muito mesmo.

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